domingo, 18 de fevereiro de 2018

Trechos Freud - estágio USP 2024

Trecho 1. O que a análise pode oferecer 

 

Cara Senhora X (9 de Abril, 1935)

 Entendo, através de sua carta, que seu filho é homossexual. Estou impressionado com o fato de que a senhora mesma não menciona este termo em suas informações sobre ele. Gostaria de perguntar-lhe, por quê evita dizê-lo? A homossexualidade não é certamente nenhuma vantagem, mas não é nada de que se envergonhar, não é nenhum defeito, não é nenhuma degradação, não pode ser classificada como doença; consideramos ser uma variação da função sexual produzida por uma certa suspensão do desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis, de tempos antigos e modernos foram homossexuais, muitos dos maiores entre eles (Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci, etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime, e uma crueldade também. Se não acredita em mim, leia os livros de Havelock Ellis.

Ao me perguntar se posso ajudar, a senhora quer dizer, suponho, se me é possível abolir a homossexualidade e fazer heterossexualidade normal ocupar seu lugar. A resposta é que, de modo geral, não podemos prometer realizar tal coisa. Em certo número de casos tivemos sucesso em desenvolver os enfraquecidos germes da tendência heterossexual que estão presentes em todo homossexual, mas na maioria dos casos isto não é mais possível. É uma questão de predicados e idade do indivíduo. O resultado do tratamento não pode ser previsto.

O que a análise pode fazer por seu filho segue uma linha diferente. Se ele estiver infeliz, neurótico, dividido devido a conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer a ele harmonia, paz de espírito, eficiência plena, quer ele permaneça homossexual ou mude durante o tratamento. Caso a senhora se decida de que ele deva fazer análise comigo (não espero que a senhora o faça!!) ele terá de vir à Viena. Não tenho intenção de sair daqui. Contudo, não deixe de me responder.

 

Cordialmente e com meus melhores votos, Freud.

 

P.S. Não achei difícil ler seu manuscrito. Espero que não encontre maior dificuldade em entender minha escrita e meu inglês.

 

Fonte: Freud, Sigmund, “Letter to an American mother”, American Journal of Psychiatry, 107 (1951): p. 787.

 Comentário: Esta carta pode ser lida de diferentes maneiras, há quem se incomode com a parte sobre "não podemos prometer", como se isso implicasse "de qualquer modo vamos tentar". 

No entanto, após lidar com a expectativa da mãe, que claramente quer que Freud "conserte" o filho, ele diz o que esperar da psicanálise - pode auxiliar o rapaz em sua vida, caso assim ele próprio deseje, de acordo com sua necessidade. 

Há um livro brasileiro só de respostas a esta carta, escrito por pensadores e escritores brasileiros. O nome é Caro dr. Freud: respostas do seculo XXI a uma carta sobre homossexualidade.

Vale ainda lembrar que para Freud somos todos bissexuais, e nossa configuração sexual é individual e de infinitas combinações, a qualquer momento - hoje sou assim, amanhã posso ser diferente. 

Em Três ensaios sobre a sexualidade, Freud traz 3 camadas distintas nas quais vivemos a sexualidade - na camada mais externa temos vestimentas, maquiagem, cabelos, etc,  que são forma de expressão e comunicação que atravessam a sexualidade, mas esta camada diz pouco sobre o indivíduo, Na segunda camada, estão os corpos e seus caracteres secundários (formato do corpo), mas para Freud isso também diz pouco. A terceira camada é interna, é no psiquismo individual que vivemos a singularidade de nossa sexualidade, com infinitas combinações. Somos potencialmente mutantes sexuais. Ainda em Três ensaios sobre a sexualidade Freud combate uma tese que se popularizava - de que a homossexualidade era uma degeneração neurológica. O argumento de Freud é simples. Se fosse assim, os heterossexuais seriam gênios. No entanto, a genialidade e a mediocridade estão presentes entre nós independentemente da orientação sexual. 

  

Trecho 2. Liberdade e responsabilidade

 "As regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência, no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos. Ver-se-á facilmente que elas (ou, pelo menos, muitas delas) podem ser resumidas num preceito único. Minha esperança é que a observação delas poupe aos médicos que exercem a psicanálise muito esforço desnecessário e resguarde-os contra algumas inadvertências. Devo, contudo, tornar claro que o que estou afirmando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta".

Fonte: Obras completas, Volume XII, artigos sobre técnica, Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise

Comentário: este é um bom resumo sobre a posição de Freud frente à psicanálise e além, é quase um resumo de postura diante da vida - cada um tem liberdade para ser e agir, deve também ter a responsabilidade (em relação às demais pessoas, a seus pacientes, a si mesmo). Freud não era um crítico de comportamentos, não apontava o que era certo ou errado, melhor ou pior. Pensava que era importante conhecer mais a verdade interna de cada um (tornar, quando possível, o inconsciente em consciente) e lidar com isso. Esta postura fica muito clara em A questão da análise leiga, vol XX. Neste texto, um psicanalista não médico é acusado de charlatanismo por estar praticando a psicanálise. Na época a discussão era sobre quem poderia ou não praticar a psicanálise e Freud defende que qualquer um pode praticá-la.


Trecho 3. Sobre interpretar

"Quem passar da interpretação de sonhos para a clínica analítica conservará o interesse no conteúdo dos sonhos, e tenderá a interpretar tão completamente quanto possível cada sonho relatado pelo paciente. Mas cedo observará que está trabalhando agora sob condições inteiramente diversas e que, se tentar levar a cabo sua intenção, entrará em choque com as tarefas mais imediatas do tratamento. Mesmo que o primeiro sonho de uma paciente se mostre admiravelmente adequado para a introdução das primeiras explicações, outros sonhos prontamente aparecerão, tão longos e obscuros, que seu significado completo não poderá ser extraído no limitado período de um dia de trabalho. Se o médico continuar o trabalho de interpretação durante os dias posteriores, produzir-se-ão, nesse meio tempo, novos sonhos que terão de ser postos de lado, até que ele possa considerar o primeiro sonho como finalmente solucionado. A produção de sonhos é às vezes tão copiosa, e o progresso do paciente no sentido de sua compreensão tão hesitante, que surgirá no analista a suspeita de que o aparecimento do material, dessa maneira, pode ser simplesmente uma manifestação da resistência do paciente, que se aproveita da descoberta de que o método é incapaz de dominar o que é assim apresentado. Além do mais, nesse ínterim o tratamento ter-se-á distanciado bastante do presente e terá perdido o contato com a atualidade. Em oposição a tal técnica, levanta-se a regra de que é da maior importância para o tratamento que o analista esteja sempre cônscio da superfície da mente do paciente, em qualquer momento, que saiba que complexos e resistências estão ativos nele na ocasião e que reação consciente a eles lhe orientará o comportamento. Quase nunca é correto sacrificar este objetivo terapêutico a um interesse na interpretação de sonhos.

Qual, então, se tivermos em mente esta regra, deve ser a nossa atitude ao interpretar sonhos na análise? Mais ou menos a seguinte. A interpretação que possa ser realizada em uma sessão deve ser aceita como suficiente e não se deve considerar prejuízo que o conteúdo do sonho não seja inteiramente descoberto.

Associação livre = invasão livre

Atenção flutuante = ouvir o que estiver na superfície do pensamento do paciente

Fonte: Obras completas, Volume XII, artigos sobre técnica, O manejo da interpretação de sonhos na psicanálise

Comentário: Há muitos Freuds, dependendo de quando, na obra, estamos lendo. Neste trecho temos um Freud paciente, descrevendo os processos de associação livre e atenção flutuante, e propondo aceitar o limite de uma sessão, confiando no processo terapêutico. 

O texto trata da interpretação de sonhos, mas podemos ler como "O manejo da interpretação", de modo geral, não somente a interpretação de sonhos. O texto acima é um bom resumo do manejo na situação de atendimento.

 

Trecho 4. Com o que trabalhamos

Deve-se compreender que cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de conduzir-se na vida erótica (ver trecho 5) – isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nos instintos que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetido – constantemente reimpresso – no decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis permitam, e que decerto não é inteiramente incapaz de mudar, frente a experiências recentes.

Fonte: Obras completas, Volume XII, artigos sobre técnica, A dinâmica da transferência

Comentário: Vivemos e revivemos em análise com nossos analistas, através da transferência, nossos aprendizados emocionais. Por isso a recomendação de análise pessoal é importante, já que trazemos nossa própria bagagem para os atendimentos e as reencotramos na contratransferência.

 

Trecho 5. O que é Eros para Freud

“Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força amorosa, a libido da psicanálise, tal como foi pormenorizadamente demonstrado por Nachmansohn (1915) e Pfister (1921), e, quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor sobre tudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’. Mas isso apenas demonstra que os homens nem sempre levam a sério seus grandes pensadores, mesmo quando mais professam admirá-los. A psicanálise, portanto, dá a esses instintos amorosos o nome de instintos sexuais, a posteriori e em razão de sua origem. Muitas pessoas ‘instruídas’ encararam essa nomenclatura como um insulto e fizeram sua vingança classificando a psicanálise como ‘pansexualismo’. Qualquer pessoa que considere o sexo como algo mortificante e humilhante para a natureza humana está livre para empregar as expressões mais polidas ‘Eros’ e ‘erótico’. Eu poderia ter procedido assim desde o começo e me teria poupado muita oposição. Mas não quis fazê-lo, porque me não me agrada fazer concessões à covardia. Nunca se pode dizer até onde esse caminho nos levará; cede-se primeiro em palavras e depois, pouco a pouco, em substância também. Não posso ver mérito algum em se ter vergonha do sexo; a palavra grega ‘Eros’, destinada a suavizar a afronta, ao final nada mais é do que tradução de nossa palavra alemã Liebe [amor], e finalmente, aquele que sabe esperar não precisa fazer concessões.

Tentaremos nossa sorte, então, com a suposição de que as relações amorosas (ou, para empregar expressão mais neutra, os laços emocionais) constituem também a essência da mente grupal.

Fonte: Psicologia de grupo e análise do ego, 1921, vol XVIII

 

Comentário: Quando Freud diz que “as relações amorosas, ou se preferirmos, os laços emocionais, constituem também a essência da mente grupal”, sem dúvida é porque constituem primeiramente a essência da mente individual. Eros é, portanto, um conceito extenso para Freud e está presente em todas as relações humanas, se mantivermos o pressuposto de que em toda relação há afetos e emoções. Trata-se, portanto, do mesmo objeto que pode ser traduzido em termos diferentes de acordo com a perspectiva (ou a preferência): Eros = instintos sexuais = investimentos libidinais = instintos amorosos = laços emocionais.

Embora Freud tenha insistido em defender sua visão de um Eros amplo, de modo geral ainda permanece a visão prosaica de que a sexualidade em seu trabalho sempre se refere a uma hiper-genitalização – como se tudo fosse sexo! 

 

Um último comentário - desamparo

Para Freud, o desamparo é a origem da mente, e a primeira fonte de desamparo é o corpo. Ainda bebês, sentimos dor vinda de fora e de dentro. De dentro, com a barriga que dói, de fora, com o conforto que tarda ou que não vem como desejado. Por isso a mente surge, para lidar com a dor. Para dar conta das perdas, para buscar objetos substitutos aos objetos que inevitavelmente perdemos, porque o corpo se desenvolve e o que antes trazia conforto não está mais disponível. 

Assim, para Freud, o Ego é antes de tudo corporal. Para Freud o destino é o corpo pois é através dele que primeiro e por último experimentamos o mundo e nunca estamos livres de nossos corpos, precisamos lidar com eles. 

O desamparo também é o princípio da ética pois, para buscar amparo, para encontrarmos um lugar ao lado de outros indivíduos e grupos, precisamos fazer compromissos. Assim adotamos e criamos limites. Em nosso íntimo, no inconsciente, recusamos limitações.

Bons textos para conferir a importância do desamparo em Freud: Projeto para uma psicologia científica (difícil de ler), O mal-estar na civilização, Psicologia das massas e análise do Eu (estes dois são leitura agradável).

quarta-feira, 8 de março de 2017

O tema do amor em Freud - parte 2

O tempo psíquico

Meses atrás, ouvindo e pensando sobre perdas e despedidas dolorosas, me vinha ao pensamento um mito, o de criação da noite.

No início, havia dois irmãos, que viviam sempre juntos, brincavam e caçavam em um dia ensolarado, sem fim. Em certo momento, um deles se afasta do outro, e começa a demorar. O outro irmão vai procura-lo e, perto de seu corpo caído, encontra um punhado de frutas e uma serpente. Seu irmão está morto, e o irmão que está vivo terá que viver sempre no dia que seu irmão morreu. Um deus observa a cena e, por piedade, cria a noite. Por consequência, cria também a passagem do tempo e a chance de esquecimento. “Faz um dia que meu irmão morreu, faz dois que meu irmão...”.

A parte mais útil deste mito não é a invenção de um tempo externo, medido no calendário, mas de um tempo interno, cujo relógio é regido por leis próprias. Sem dúvida é deste tempo que Freud fala quando diz que “os histéricos sofrem de reminiscências”. Não só os histéricos, mas também os saudáveis sofrem por suas lembranças.

Se me permitem uma generalização – inevitável numa exposição tão breve – podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). Uma comparação com outros símbolos mnêmicos de gênero diferente talvez nos permita compreender melhor esse simbolismo. Os monumentos com que ornamos nossas cidades são também símbolos dessa ordem. Passeando em Londres, verão, diante de uma das maiores estações da cidade, uma coluna gótica ricamente ornamentada – a Charing Cross. No século XIII, um dos velhos reis plantagenetas, que fez transportar para Westminster os restos mortais de sua querida esposa e rainha Eleanor, erigiu cruzes góticas nos pontos em que havia pousado o esquife. Charing Cross é o último desses monumentos destinados a perpetuar a memória do cortejo fúnebre. Em outro ponto da cidade, não muito distante da London Bridge, verão uma coluna moderna e muito alta, chamada simplesmente ‘The Monument’, cujo fim é lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e destruiu boa parte da cidade. Tanto quanto se justifique a comparação, esses monumentos são também símbolos mnêmicos como os sintomas histéricos. Mas que diriam do londrino que ainda hoje se detivesse compungido ante o monumento erigido em memória do enterro da rainha Eleanor, em vez de tratar de seus negócios com a pressa exigida pelas modernas condições de trabalho, ou de pensar satisfeito na jovem rainha de seu coração? Ou de outro que, em face do ‘Monument’ chorasse a incineração da cidade querida, reconstruída depois com tanto brilho? Como esses londrinos pouco práticos, procedem, entretanto, os histéricos e neuróticos: não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente. Essa fixação da vida psíquica aos traumas patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior significação prática. Freud, 1910, 5 lições de psicanálise, v. XI

Tomando diferentes momentos de uma única pessoa, temos outro trecho como exemplo:
Parece perfeitamente normal que aos quatro anos de idade uma menina chore penosamente se a sua boneca quebrar-se; ou aos seis, se a governanta reprová-la; ou aos dezesseis, se for desprezada pelo namorado; ou aos vinte e cinco, talvez, se um filho dela morrer. Cada um desses determinantes de dor tem a sua própria época e cada um desaparece quando essa época terminar. Somente os determinantes finais e definitivos permanecem por toda a vida. Devemos julgar estranho se essa menina, depois de ter crescido, se tornado esposa e mãe, fosse chorar por algum objeto sem valor que tivesse sido danificado. Contudo, é assim que se comporta o neurótico. Freud, 1925, Inibições, sintoma e ansiedade, v. XX.

Como o irmão do mito que permanece vivo, há partes de nós cujos relógios param ou movem-se muito devagar, e a intensidade da dor é a mesma ou próxima do dia do evento de nossa perda. São elementos do passado que acontecem continuamente, no agora. Assim, quem conta comovido “perdi meu irmão dois anos atrás”, quando o conta, pode estar muito próximo, emocionalmente, de estar dizendo “acabo de perder meu irmão” ou ainda “estou perdendo meu irmão neste momento. Conheço e reconheço este momento, a cada vez que ele volta”. Sei que esta imagem é pavorosa, e não tenho dúvida que muitas das nossas distorções de vocabulário servem para mitigar pavores e assombros semelhantes, sempre com a finalidade necessária, algo maníaca, de afirmar “está tudo bem”. Penso que deste modo podemos abordar de forma mais achatada – plana – questões que são poliédricas. Por exemplo, a fixação contemporânea no gênero dos objetos de amor escolhidos, deixando de lado toda a imensa variedade de fantasias que buscam ser satisfeitas nos alvos e metas das pulsões, ou, de modo mais claro, nos preocupamos com a superfície de “com quem você goza?” sem nos ocuparmos com “como você goza?”, “quais as condições para o seu prazer?”. É útil ter uma bruxa a se perseguir, seja ela o homossexual, o gordo, o tabagista, o direitista, o esquerdista, etc., porque é trabalhoso ir abaixo da superfície.

Alguns filmes retratam mais ou menos esta experiência temporal das emoções. O mais próximo que me ocorre é o divertido Feitiço do tempo, com Bill Murray, ou o recente No limite do amanhã. Em ambos os casos, o que nos chama a atenção e nos envolve não é a repetição, mas a mudança que se opera, esperançosa e triunfante, de quebrar o coágulo do tempo. E em ambos os casos, o tempo e o indivíduo são sempre duas instâncias separadas, o indivíduo está preso no tempo. O contrário disto, o tempo preso no indivíduo, é o mais próximo do que ocorre com as emoções.

Penso, assim, que é útil uma outra leitura da afirmação comum “o inconsciente é atemporal”, usada para dizer que ele não tem tempo definido. Entendo que na escrita de Freud o inconsciente é um sempre, transitando entre passado e futuro, que acontece a cada instante, agora. Esta noção de tempo é essencial para entender a relação entre amor e dor.

Adoecer de amor

     Como dito anteriormente, coisa e pessoas, hobbies, trabalhos e projetos que alimentamos ou deixamos, aqueles com os quais mantemos uma certa distância platônica, temos casos sazonais, relações de prazer e ódio, são também objetos de amor, e formas de amar. Embora sejam de naturezas diferentes, o que sugere uma discrepância em equalizar o banal e o catastrófico, eles não encontram grande distância na vida psíquica. Todos dão testemunho do descompasso entre o investimento que deles é feito e a expectativa de que correspondam. Neste descompasso com os objetos de amor encontramos desde os casais e os solavancos amorosos das diferenças que colidem, até o peso cotidiano dos projetos e trabalhos que tem ritmo próprio, avessos ao desejo de quem neles se envolvem. Freud usará a expressão “perda do ser amado” mais comumente nos últimos anos de sua vida. É encontrada com mais frequência a partir de 1925, quando sua linguagem científica cede lugar a uma linguagem mais poética.


O sofrimento nos ameaça de três lados: no nosso próprio corpo, destinado à decadência e à dissolução(...); do lado do mundo exterior, que dispõe de forças invencíveis e incansáveis para nos perseguir e aniquilar; e, finalmente, de nossa relação com os seres humanos. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Freud, 1930. Mal-estar na civilização, v. XXI

A possível solução para o sofrimento de que corremos risco na relação com o outro é o amor ao próximo, que é duplamente inviável.

Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.)... Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que só uma pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte – e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável? 


E conclui:

Nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Freud, 1930. Mal-estar na civilização, v. XXI

A ideia de que amemos o próximo e esperemos ser por ele amados, como fórmula para a felicidade, é duplamente inviável primeiro porque não é possível amar o próximo, e, se escolhemos um “próximo especial” para amar acima dos outros, estamos em risco aumentado. Quanto mais amamos, mais estamos em risco de sofrer, pela imprevisibilidade do próximo.

 Pega, mas não se apega

Em outro artigo, Inibições, sintomas e ansiedade (1925), considerando clinicamente a mesma questão da perda do objeto amado, Freud propõe que a dor é a resposta à perda efetiva da pessoa amada, e que a angústia é a resposta à ameaça de uma perda possível. Gosto da sabedoria popular, expressa na fórmula “pega, mas não se apega”. É um aviso que diz “goze este encontro, siga o princípio de prazer, mas fique atento para não estabelecer laços emocionais, não se permita ser investido de libido por este objeto, controle suas catexias”. Adriana Calcanhotto canta bem o problema na canção Maresia.




O meu amor me deixou
levou minha identidade 
não sei mais bem onde estou 
nem onde há realidade 

Ah, se eu fosse marinheiro 
era eu quem tinha partido 
mas meu coração ligeiro 
não se teria partido

ou se partisse colava 
com cola de maresia 
eu amava e desamava 
surpreso e com poesia 


Se fosse marinheiro, não seria eu quem sofreria, mas o outro, pois eu é que partiria, e se, por acidente, tivesse me apegado, meu luto seria breve.
O luto é um lento desinvestimento, que devagar enfraquece a imagem do amado efetivamente desaparecido, retirado, e do qual resta uma imagem, como a  Charing Cross do exemplo de Freud. Esta imagem que resta é semelhante a um membro fantasma, que puxa para si, em efeito de sucção, a energia do indivíduo, depositada em outras representações (outras relações).

E agora, como se explicam os efeitos da melancolia? A melhor descrição dos mesmos: inibição psíquica, com empobrecimento pulsional e o respectivo sofrimento.
Podemos imaginar que, quando o ps. G. [grupo sexual psíquico] se defronta com uma grande perda da quantidade de sua excitação, pode acontecer uma retração para dentro (por assim dizer) na esfera psíquica, que produz um efeito de sucção sobre as quantidades de excitação vizinhas. Os neurônios associados são obrigados a desfazer-se de sua excitação, o que produz sofrimento. Desfazer associações é sempre doloroso. Com isso, instala-se um empobrecimento da excitação – uma hemorragia interna, por assim dizer – que se manifesta nas outras pulsões e funções. Essa retração para dentro atua de forma inibidora, como uma ferida, num modo análogo ao da dor. Freud, Extrato dos documentos dirigidos a Wilhem Fliess. 1895-99, v. I.


Encrencas que param a vida, encrencas que inventam vida


Uma professora querida costumava dizer que há dois tipos de encrenca, as que param a vida, e as que inventam vida. As que param, já conhecemos. Tempo e trabalho, associados, como oferece a psicoterapia, permitem não o apagamento de um registro doloroso, ou sua evitação, mas uma travessia pela dor, e o consequente enfraquecimento da lembrança, permitindo que no tempo interno exista um ontem. As palavras agem, assim, como agentes desaglutinantes que bucam desfazer os coágulos de libido e flexibilizá-la, permitindo fluxo e nova busca e novos investimentos em outros objetos. As palavras cavam na massa de libido cristalizada caminhos e espaços para o novo. Assim, como o irmão que vive, no mito acima, inventar um amanhã.


Para que não fique longo demais, muitos pontos interessantes ficarão de fora deste post, como a manifestação em sintomas e inibições da dor de amar, assim como a visão de Freud sobre a angústia e a ansiedade enquanto ameaça da retirada do objeto de amor. Para isto, sugiro conferir Inibições, sintomas e ansiedade. Também ficou de fora a participação ativa do outro (o analista) em um processo de cura através do amor, neste caso Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1905, vol IX) é boa referência. Édipo fica pra próxima. Usei na escrita deste texto os textos referidos acima, assim como escritos de J-D Nasio e anotações de estudo das aulas com Fátima Milnitzsky, do Sedes Sapientiae.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

O tema do amor em Freud parte 1

     O que diz Freud sobre o amor?




O tema do amor é uma constante em Freud, desde suas primeiras observações pré-psicanalíticas sobre sofrimento e adoecimento psíquico e mais tarde e especialmente em escritos posteriores. Uma vez que o amor é elemento essencial tanto no adoecimento quanto no tratamento e cura psíquicos, é preciso saber do próprio Freud sua definição de amor.

“Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força amorosa, a libido da psicanálise, tal como foi pormenorizadamente demonstrado por Nachmansohn (1915) e Pfister (1921), e, quando o apóstolo Paulo, em sua famosa Epístola aos Coríntios, louva o amor sobre tudo o mais, certamente o entende no mesmo sentido ‘mais amplo’. Mas isso apenas demonstra que os homens nem sempre levam a sério seus grandes pensadores, mesmo quando mais professam admirá-los. A psicanálise, portanto, dá a esses instintos amorosos o nome de instintos sexuais, a posteriori e em razão de sua origem. Muitas pessoas ‘instruídas’ encararam essa nomenclatura como um insulto e fizeram sua vingança classificando a psicanálise como ‘pansexualismo’. Qualquer pessoa que considere o sexo como algo mortificante e humilhante para a natureza humana está livre para empregar as expressões mais polidas ‘Eros’ e ‘erótico’. Eu poderia ter procedido assim desde o começo e me teria poupado muita oposição. Mas não quis fazê-lo, porque me não me agrada fazer concessões à covardia. Nunca se pode dizer até onde esse caminho nos levará; cede-se primeiro em palavras e depois, pouco a pouco, em substância também. Não posso ver mérito algum em se ter vergonha do sexo; a palavra grega ‘Eros’, destinada a suavizar a afronta, ao final nada mais é do que tradução de nossa palavra alemã Liebe [amor], e finalmente, aquele que sabe esperar não precisa fazer concessões.
  
     Tentaremos nossa sorte, então, com a suposição de que as relações amorosas (ou, para empregar expressão mais neutra, os laços emocionais) constituem também a essência da mente grupal.
In: Psicologia de grupo e análise do ego, 1921,  vol XVIII

Assim, quando Freud diz que “as relações amorosas, ou se preferirmos, os laços emocionais, constituem também a essência da mente grupal”, sem dúvida é porque constituem primeiramente a essência da mente individual. Eros é, portanto, um conceito extenso para Freud e está presente em todas as relações humanas, se mantivermos o pressuposto de que em toda relação há afetos e emoções. Trata-se, portanto, do mesmo objeto que pode ser traduzido em termos diferentes de acordo com a perspectiva (ou a preferência): Eros = instintos sexuais = investimentos libidinais = instintos amorosos = laços emocionais.
Embora Freud tenha insistido em defender sua visão de um Eros amplo, de modo geral ainda permanece a visão prosaica de que a sexualidade em seu trabalho sempre se refere a uma hiper-genitalização – tudo é sexo!

O leitor reencontrará a referência ao Eros de Platão, quase inalterada, nos 3 ensaios (1905), e em sua troca de correspondência com Einstein (Por quê a guerra?, 1932), e verá ao longo de seus escritos  um Freud que transita entre a neurobiologia e a poesia, à medida que descobre e constrói uma ferramenta capaz de explorar o amplo campo do amor.

“Com frequência muito especial verifica-se que os melancólicos são anestésicos. Não têm necessidade de relação sexual (e não têm a sensação correlata). Mas têm um grande anseio pelo amor em sua forma psíquica - uma tensão erótica psíquica, poder-se-ia dizer”.  (Trecho retirado do RASCUNHO E: COMO SE ORIGINA A ANGÚSTIA, vol I das Obras completas, escrito entre 1892 e 1899, e é uma entre muitas outras anotações de um Freud pré-psicanalítico, em um período equivalente a uma “corrida do ouro da psicopatologia”, em que ele como tantos outros aventureiros começavam a tentar entender o funcionamento da psique)


Distorções do desejo

Precisamos primeiro aqui de dois conceitos, o primeiro é investimento. Penso que as palavras dão testemunho da distorção que o desejo lhes causa à medida que aproxima “quero que seja” e “é”. Acredito que um exemplo disto é a palavra investimento. De modo geral nossa noção de investimento é confortavelmente monetária: depositar dinheiro/energia em um objeto externo, o que pode resultar em ganho ou perda de capital. Originalmente, em psicanálise e na escrita de Freud, o sentido de investimento/catexia é o oposto: ser ocupado por algo que invade, espalha-se, e toma, ocupa.

Basicamente, somos cofrinhos no qual moedas feitas de nossa própria energia vão se enfiando à nossa revelia. Somos ocupados por nossos objetos de amor, que são criados por nós mesmos, e que agem como soldados de um exército de ocupação. Temos aqui o segundo conceito, objeto. Tomamos objeto por algo inanimado e manipulável, penso que o mesmo acontece em expressões como objeto sexual, com o sentido de “faço disto o que quiser, sou o senhor que controla e sou invulnerável”. Quem dera! Embora haja diferentes e elaboradas noções de objeto, há algo em comum entre elas: são alheios a nosso desejo, fugidios, e de grande plasticidade. No desenho animado, quando Tom pega Jerry, o ratinho abre um impossível e divertido zíper em meio às mãos do gato e escapa, se Tom consegue se livrar de Jerry, fica entediado, e precisa busca-lo de volta, se Tom desiste de perseguir Jerry, o ratinho vem provoca-lo, coloca em suas mãos um taco de baseball e começam novamente sua rotina.



“Eu te amo, cara”

Guardo com carinho uma anedota de bar contada por um amigo. Sentado em uma mesa próxima, ele acompanhou a conversa entre dois camaradas que, tomando cerveja, queixavam-se de suas esposas e confirmavam o tempo todo como os dois, juntos ali, bebendo, papeando e compartilhando seu universo comum era algo muito superior às suas vidas conjugais. Sempre que o dono do bar, figura muito bem humorada e de sabedoria particular, provavelmente decorrente de anos de escuta de buteco, vinha para trazer outra garrafa cheia à mesa, os amigos pediam sua confirmação: “Mulher só dá trabalho, é ou não é?”, “Nada como bater uma bolinha e conversar do que interessa, é ou não é?”. Depois de muitas cervejas e muitos pedidos de confirmação, o dono do bar perde a paciência, e diz: “É, vocês então vão sair pra jogar bola juntos, tomar cerveja juntos, conversar, aí, no fim da noite, vocês vão pra casa e dormem juntos também, que tal?” Ficaram indignados. “Ô loco, cara! Que história é essa!” Mas passaram horas fazendo declarações de amor um pro outro, dizendo “o que há entre nós é especial, o prazer que tenho com você, não tenho em casa”. Faltou só um “Eu te amo, cara”. O que o dono do bar pergunta, genialmente, é “Até onde vai o amor de vocês”? A resposta é simples. Surpreendidos com a situação, os amigos reafirmam a forma como decidiram delimitar e realizar seu amor – seus instintos sexuais, ou, se preferirmos, seus laços emocionais, não terão uma realização genital.

Menos sorte teve Daniel-Paul Schreber, famoso caso de enlouquecimento de um prestigiado juiz que, em sua autobiografia Memória de um doente dos nervos, faz uma detalhada descrição da perda de sua sanidade e do intrincado sistema religioso que construiu, no qual ele seria fecundado por Deus e geraria uma nova raça de homens. O próprio Schreber identificava o ponto em que a doença irrompeu como o momento em que lhe surge um pensamento: “seria bom ser uma mulher no ato da cópula”.  Deste ponto em diante, seu mundo se fragmenta em delírios de perseguição, especialmente direcionados ao médico que lhe ajudou em duas internações, o Dr. Flechsig, a quem ele havia se afeiçoado muito. Na leitura de Freud, Flechsig representava  inconscientemente uma figura paterna, e o afeto era indício de uma transferência (sic) homossexual, uma expressão, inaceitável para Schreber, de amor pelo mesmo sexo.
   
                         

                                                Bromance ou romance?

          O amor em si não sabe ao que pode e ao que não pode se ligar. O amor não se manifesta com um julgamento de adequação, o amor passa por um julgamento de adequação, em que buscamos decidir e permitir o que e como amar. 


(fim da parte 1, na próxima, Amor e dor, e Édipo)


Textos visitados para o post:

Freud: Rascunho  E: como se origina a angústia, vol I; Três ensaios sobre a sexualidade, 1905; Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia, 1911; Psicologia de grupo e análise do ego, 1921;  Por que a guerra? 1932. Laplanche & Pontalis, Vocabulário da psicanálise; Hanns, Dicionário comentado do alemão de Freud.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Seriedade e brincadeira

Observe o brincar das crianças. Passam horas definindo as regras de suas brincadeiras, posicionando brinquedos, ou simplesmente absortas, profundamente envolvidas com seja lá qual for seu objeto de jogo no momento.
Em O poeta e o fantasiar, artigo de Freud pessimamente traduzido para o português como Escritores criativos e devaneios, Freud diz que não há oposição entre brincadeira e seriedade - brincadeira é fantasia, o que se opõe à fantasia é a realidade.

A antítese de brincar não é o que é sério, mas o que é real. Apesar de toda a emoção com que a criança investe seu mundo de brinquedo, ela o distingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real. Essa conexão é tudo o que diferencia o ‘brincar’ infantil do ‘fantasiar’. (Freud, 1907)

A seriedade dos adultos

Seriedade pode ser lida como tipos de respeito diferentes, de um lado é a apropriação íntima de um objeto (pegarei isto para brincar), e assim, é possível investigá-lo, desmontá-lo, explorá-lo, ou em perspectiva oposta, tratá-lo com outro um tipo particular de respeito, que é a reverência que se tem aos tabus e dogmas – não são para tocar, você aprende e reproduz. Lembro-me de minha surpresa em uma das bienais de arte de São Paulo em que, cercado por obras que vinham sempre com o aviso ‘Proibido tocar’, deparei com Os bichos de Lygia Clark, expostos sobre uma mesa com os dizeres, ‘Por favor, toque’.



Tanto em O poeta e o fantasiar quanto em O humor (1927), Freud aponta como a possibilidade de brincar com a realidade pede um equilíbrio dinâmico entre extremos. Se nos aproximamos demais da fantasia, perdemos a condição de diálogo com o mundo externo e de viver em alguma sintonia com outros indivíduos cuja frequência, como no rádio, permita entender e transmitir ideias e emoções. Se nos aproximamos demais da realidade perdemos a condição de criar, adquirimos automatismo funcional concreto, sem abstração.

Entre extremos

Em O humor, Freud retoma uma piada de que gostava: “Um criminoso, levado à forca numa segunda-feira, comenta: ‘Bem, a semana está começando otimamente’”, e apresenta assim um aspecto inusitado do superego, como uma instância que pode dizer ao ego “Veja! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas que sobre ele se faça uma boa piada!”.
A brincadeira e o humor são recursos preciosos que Freud discute nos dois artigos mencionados, que retomam questões abertas em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905), e deixa em aberto algumas questões que são de interesse para os clínicos: (1) O extremo da comédia, fazer piada de tudo, convida ao esvaziamento e dissociação da importância das experiências vividas, como um recurso de defesa que economiza ao indivíduo sofrer o afeto enquanto o mantém distante dele; (2) O desejo de corresponder à realidade e abraçar as responsabilidades da vida e do trabalho (obrigações, contas, vida social, etc.) dos meios aos quais nos filiamos nos aproxima de uma mortificação melancólica ao constatar que o mundo tem características pavorosas que nos interpelam o tempo todo com abuso sexual, violência doméstica, morte, doenças terminais, assassinato, corrupção e mais, sem evitar o convite ao distanciamento da realidade através da idealização da norma, manifesta em uma supervalorização das leis e da religião.
Recordo-me sempre de um professor muito querido que contava que, em viagem pela América Latina deparou em um restaurante com a pintura de um palhaço sobre um triciclo, em uma corda bamba, com dizeres em vermelho escritos na tela “Ai Jesus, que equilíbrio tu me pedes”. Não escapamos da necessidade de uma medida de transgressão, entre o imperativo de aproximarmo-nos das regras e, na outra extremidade, exercitar uma criatividade rebelde entre elementos da vida de naturezas diferentes como os brinquedos das crianças: o sucesso dos quebra-cabeças consiste em desvendar regras fixas e segui-las, os blocos de Lego oferecem regras fixas de encaixe, mas com combinações infinitas, e é sempre possível, numa sala de aula, dobrado durante anos a fio numa carteira escolar, em algum momento, juntar uma caneta BIC e uma régua e fazer um avião.

ps.: Feliz aniversário, caro Sigmund

Textos visitados e recomendados: 
Freud: Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905); Escritores criativos e devaneios (1907); O humor (1927); Henri Bergson: Ensaio sobre a significação do cômico (1900); Daniel Kupermann: Ousar rir (2003) 


quinta-feira, 3 de abril de 2014

Simples

Gosto de ver como as palavras carregam, ao mesmo tempo, sentidos muito variados, e com frequência opostos.
Por exemplo, “simples”. Vejo com frequência a palavra usada com o sentido de “fácil, que não apresenta dificuldade”. Nunca me esqueço de uma história que ouvi de uma amiga, muitos anos atrás. Ela procurou um ourives para colar de volta um brilhante que havia soltado de seu anel. O homem pegou o anel e desapareceu por alguns minutos, voltou, devolveu a peça e disse o preço. “São sessenta reais”. “SESSENTA REAIS?!! Mas isso é muito caro! O senhor levou  5 minutos para fazer o serviço!”. O homem responde “Minha senhora levei 50 anos para colar seu anel em 5 minutos”.

Intimidade

Entre 5 de dezembro de 1945 e 17 de janeiro de 1946 Picasso produziu 11 ilustrações do mesmo objeto, um touro. Continuamente brincando com a imagem foi fazendo novas versões, gradualmente simplificando o desenho até sua essência, uma forma mais econômica e sofisticada. Levou 40 dias para simplificar um desenho, e, como ele mesmo dizia, levou 4 anos para pintar como Rafael, mas levou uma vida inteira para pintar como uma criança.



Simplificar dá trabalho, é preciso tempo e intimidade. Até a lasanha de microondas que colocamos no forno e fica pronta em minutos levou anos de aperfeiçoamento e pesquisa para ser o que é.
Lembro destas histórias quando sinto pressa, e quando ouço pessoas com pressa, especialmente nas frases com “só”: “É só fazer tal e tal coisa, não entendo porque não vou e realizo logo o que quero”. 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Amai o próximo como a ti mesmo


     Dia desses em conversa de bar, ouvi de um amigo sua teoria sobre um dos elementos do sucesso do Porta dos Fundos. De acordo com ele é, predominantemente, um humor de identificação, e não de estranhamento. Ao assistir, o espectador reencontra elementos de sua vida cotidiana e se reconhece “também me sinto assim, também passei por isso”. Que é basicamente “Como é gostoso ver meu drama encenado na internet, e que delícia saber que o mundo é igual a mim”. Cafuné no narcisismo.
     

     Em seu artigo sobre o narcisismo (1914) Freud aponta três tipos de amor narcísicos:
(1) a pessoa ama o que ela é, 
(2) a pessoa ama o que ela foi e 
(3) a pessoa ama o que ela gostaria de ser. 

     Assim, o narcisismo é em parte amor por si e em parte amor pelo outro, desde que ele espelhe a si mesmo ou mostre o que gostaríamos de ser/ter. Uma vez escolhido o objeto (homem ou mulher, com as características desejadas), o indivíduo sente realização ao encontrar um igual ou ao encontrar espelhado no outro o complemento que idealizava.

     Diante da possibilidade de criar algo sem considerar o público, a primeira pergunta que eu faria seria é “Quem em sã consciência cria um produto para aborrecer o outro?”. Mas não se trata de planejar intencionalmente o aborrecimento alheio, mas de um processo criativo que não tenha como finalidade primeira o sucesso do consumo. Lembro-me de outra conversa com amigos que comentavam sobre como achavam absurda a condição do professor diante do desrespeito dos alunos e arrogância dos pais na situação de ensino, remetendo a relação professor-aluno/família ao pervasivo “Você é pago para isso, faça seu trabalho”. Não só entendo as crianças e os pais, como penso que estão certos em sua expectativa sobre os produtos que consomem. A lógica de “O cliente tem sempre razão” se estende a todas as relações que passam pelo dinheiro e ainda outras. Sob a bandeira da flexibilidade e especificidade das necessidades individuais os produtos vão sendo moldados para a satisfação do cliente, e o cliente vai sendo convidado a ser satisfeito em sua expectativa. Entendo que é a troca sutil de liberdade por aceitação.
     

     Meu dicionário etimológico me conta que, no começo do século 15, em latim , producere significava “desenvolver, proceder, extender; gerar, fazer surgir, trazer/guiar à existência”. Entendo que hoje o sentido comum de produto está diretamente ligado a um processo de falsa alfaiataria, um fazer sob medida que almeja garantir o consumo através da venda, em meio à concorrência.
     

     Não saberei retomar o exato diálogo, mas resgato uma situação. Em apresentação ocorrida anos atrás na Unifran, de Franca, uma professora falava da relação entre o analista e seu paciente, e de como recebê-lo. Alguém da plateia comentou que para ela aquilo correspondia ao ditado “amai ao próximo como a ti mesmo”. A professora não concordava, e disse que considerava uma forma de torpe de violência amar o próximo como a si mesmo, pois é oferecer ao outro o que eu espero que ele deseje, sem que haja espaço de fato para sequer saber o que o outro deseja.
     

    Em conclusão, me parece comum esperar e ter prazer em encontrar um mundo igual a si e não ter paladar para outras configurações.

Freud e os novos estudos de neuroimagem

Em Maio de 2011 ouvi comentário de um amigo psiquiatra sobre artigo publicado na revista Nature, grande publicação científica internacional, que trazia estudo que mostrava que cientistas foram capazes de criar, em laboratório, células com defeitos característicos da esquizofrenia, e idênticas às encontradas no córtex de esquizofrênicos. O parágrafo de abertura do texto começava com as seguintes palavras: “A esquizofrenia é um debilitante transtorno neurológico...”. A sutil importância destas poucas palavras é que localiza a esquizofrenia não no campo da psiquiatria, mas da neurologia. Não se trata unicamente de disputa territorial, mas também de etiologia (causa) e terapêutica (tratamento), pois é a hipótese etiológica que aponta o tratamento. Se tem dúvida, recorde-se das discussões recentes sobre hiperatividade e  vai ter uma dimensão da encrenca. Caso a hiperatividade exista, e seja de fato neurológica, o primeiro curso de tratamento é a introdução de medicação, se tiver base fisiológica e ambiental, seu lugar é mais próximo da psiquiatria, se sua origem estiver na intimidade das relações familiares e suas interações, seu lugar é na psicologia. A ideia mais linda seria que estes três ramos dessem as mãos numa corrente de respeito mútuo visando o bem comum. Sou um amigo do diálogo, assim como certamente você o é, leitor, um profissional interdisciplinar. Ainda assim, a etiologia define a doença e o tratamento.

 Não pretendo incitar ninguém a perseguir com ancinho e tocha outro profissional liberal. Trata-se de acompanhar esta chama de flerte reacendida entre a psicanálise de Freud e a ciência com seus novos brinquedos.

Tenho visto um aumento nos estudos que se apoiam em Freud para testar hipóteses, e que tem me deixado com uma pulga atrás da orelha: comprovar a teoria freudiana através de estudos de imagem não é o mesmo que comprovar a eficácia da terapêutica criada por Freud.

Ressalto 3 artigos recentes que vem circulando pela internet, e que tangenciam o nó neuro-psicanalitico:
1)      Entre outros projetos criativos, o brasileiro Sidarta Ribeiro tem investigado, em ratos e em humanos, as propriedades dos sonhos e seu potencial de aprendizado. O estudo é realizado observando a atividade neural do sujeito, alternadamente, durante o sono e em um labirinto. Os dados mostram que as mesmas áreas do cérebro aparecem ativadas, indicando que durante o sono tanto humanos quanto ratos revisitam o labirinto em busca de soluções.
2)      Ao terminar de ler na Exame reportagem referente ao estudo de Aybek & col. publicado em janeiro de 2014, a conclusão óbvia para mim foi “a histeria é uma doença neurológica”. O texto relata estudo do King’s College com a Universidade de Melbourne em que exames de neuroimagem apontam a possibilidade de confirmação da tese freudiana de que a conversão histérica se dá por repressão de afetos e lembranças. A reportagem original em inglês é menos empolgada e cheia de dados chatos e importantes sobre metodologia usada, áreas do cérebro avaliadas e link para o estudo original. Resumo aqui.
3)      O terceiro artigo é do mexicano Raul Miranda Arce, psiquiatra e psicanalista mexicano, e foi publicado na Calibán, Revista Latino-Americana de Psicanálise (você deveria ler, está na internet em português e é de graça). Arce discute como os achados recentes sobre as funções do sistema límbico, especialmente de duas estruturas (a amígdala e o hipocampo), e resultados obtidos em estudos feitos com populações específicas (pacientes que sofreram abuso sexual), permitem uma leitura do adoecimento mental e da clínica psicanalítica que são complementares. Se conhecer uma única especialidade já é difícil, imagine articular bem duas delas.
                
Outra parte que me importa nesta discussão fora a questão etiologia-terapêutica é uma pergunta: Por que tanto amor pela imagem se trabalhamos com palavras?. Desde os Estudos sobre histeria temos relatos que são facilmente confirmados com observação clínica de que as palavras modificam os corpos, tanto no adoecimento quanto no tratamento, e não vejo que grande diferença as imagens possam fazer, a não ser o prazer de dizer “Viu? Eu não disse?”. Reconheço também que há  um grande fantasma de validação que pede para ser aplacado, uma vez que trabalhamos com fatos imateriais. Não vale a pena dar atenção a ele, as palavras são mais importantes, e é preciso trabalhar sem precisar ser amado por todos. Talvez a melhor referência da eficácia simbólica das palavras ainda seja o texto de Levy-Strauss.

Em seu livro Com uma perna só, de 1984, o neurologista Oliver Sacks escreve: “A neuropsicologia, como a neurologia clássica, busca ser inteiramente objetiva, e seu grande poder, assim como seus avanços, vem unicamente disto. Mas um ser vivo, e, especialmente um ser humano, é em primeira e última instância... um sujeito, não um objeto. E é precisamente o sujeito, o “Eu” vivo, que é excluído da neurologia”.

Os testes laboratoriais em sua mais séria e útil perspectiva permitem isolar e reduzir o sujeito a um organismo, com o ônus de dessubjetivar a prática clínica e transformar a relação entre pessoas sob este prisma*. A frase não é minha, é da psicanalista e psiquiatra Liana Albernaz de Melo Bastos. Sem dúvida aposto na utopia do diálogo, mas não aposto na validação da psicanálise através de outras áreas do conhecimento.

Das referências abaixo, insisto para conferir a Calibán.

Sobre reprodução in vitro de células com características da esquizofrenia: http://www.nature.com/nature/journal/v473/n7346/full/nature09915.html
Artigo da equipe do brasileiro Sidarta Ribeiro, Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-44462003000600013&script=sci_arttext
O estudo sobre neuroimagem da histeria, de S. Aybek: http://archpsyc.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=1780023
O artigo na Calibán, sobre como nosso cérebro se modifica com traumas e de como as palavras podem modificar dano, de R.M.Arce: http://issuu.com/fepalpublicaciones/docs/caliban10port
*Você encontra esta ideia muito melhor desenvolvida em Psicanálise Baseada em Evidências?, artigo de Liana Albernaz de Melo Bastos. Está na PHYSIS, Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 12(2):391-408, 2002. Tem em livro também.